Ana entrou no quarto, depois de ter apagado a luz da cozinha e da sala. Fazia frio, por isso vestiu um casaco, cujas mangas demasiado longas pendiam, até ao momento em que as dobrou, com ar decidido, e, finalmente suspirou de alívio. Nos últimos dez minutos, enquanto reunia as tintas que utilizara para pintar a porta do frigorifico ouvira uma série de sons estranhos provenientes do primeiro andar, os ruídos pareciam sair do quarto da Maria, a menina franzina, de olhos matreiros, tão escuros quanto os seus cabelos longos e encaracolados.
A criança nascera sem ser programada, fora, sim, muito desejada. Ana passava mais tempo com Maria do que Pedro, o pai de Maria, mas procuravam compensar esse facto realizando actividades extra, habitualmente durante o fim-de-semana. A hiper-actividade de Ana fazia com que realizasse mil tarefas, umas inesperadas, outras há muito adiadas, mesmo quando não podia... ocupava-se de mil pequenas coisas, geralmente quando Pedro não estava, quando Maria se embrenhava em actividades que a mantinham ocupada e feliz. Por isso hoje aproveitara para pintar aquela porta, cujas cores se tinham alterado. Feliz com o desaparecimento das manchas de ferrugem do frigorifico mas um pouco inquieta com o que estaria a acontecer no piso superior, Ana, com gestos felinos, subiu rapidamente os degraus da escada, sem sequer pousar as mãos no corrimão em ferro forjado.
Pé ante pé entrou no quarto, onde uma semi-penumbra mostrava a janela entreaberta, a cama desfeita, dois livros abertos, uma tesoura, um tubo de cola e a guitarra, colocada numa posição que fazia lembrar um equilibrista caído. Com um sorriso semi-aprovador, embora um leve franzir de sobrancelhas fosse visível na sua cara, Ana passou a mão esquerda nos seus próprios cabelos revoltos, de cor ruiva, pensando que ela era um pouco assim, o que nem sempre era bom, perdia constantemente objectos, esquecia-se pronto.
Maria devia ter travado uma batalha campal no seu quarto, seria impossível dizer onde estaria a sua fita do cabelo! Aquele quartel-general, nome que se adequava ao quarto de Maria estava de pernas para o ar. Ana acercou-se da escrivaninha onde a rapariguita estava. Maria parecia sonhar, porque os grandes olhos estavam imóveis, em longínquas viagens, no local para onde voam as imaginações dos sonhadores, certamente fora do quarto, onde a desarrumação ainda fazia sorrir.
Maria sentiu a presença de Ana, mais do que ouviu, virou-se para esta e a sua voz ecoou no silêncio, súbito companheiro daquele momento de partilha, Maria perguntou surpreendendo sua mãe: Aninhas, tenho um trabalho difícil, de que forma se diz gosto de ti? Ana sorriu pelo carinho do tratamento, surpreendida pela pergunta inesperada. Pois, retorquiu Ana corando, após um momento de hesitação. É para Língua Portuguesa? Que pergunta estranha, pois... ora...diz-se com muitos adjectivos, muitas, muitas, muitas vezes. De forma grande, pequena, com beijos, lágrimas risos suor, ranho e muitas gargalhadas, diz-se imensamente!
Imensamente, o que é isso? É um advérbio, acrescentou rapidamente Ana. Serve para fazer poemas, retorquiu Maria? É porque o meu professor disse que os poemas são bonitos.
Pois... respondeu Ana, levemente irritada com aquele professor de português muito falador. Maria sorriu com segurança e disse saber o que era um poeta, era uma pessoa que fazia uma sopa de letras. Sabia porque a sua amiga Teresa lhe tinha contado, em segredo, baixinho, com um ar muito misterioso e entendedor, no outro dia, quando foram almoçar na cantina da escola. Ana sorriu e finalmente compreendeu porque tinha Maria afirmado, no outro dia, ter comido poetas na escola, foi no mesmo dia em que Maria ficou muito zangada com seu pai, pois este não a tinha levado a sério, respondera com ar sério, filha, os poetas não se comem, dizem-se. É assim a troca de palavras, os segredos, por vezes, não se compreendem totalmente, desvendam-se aos poucos, ou então calam-se, perante o medo de não poderem ser inteiramente partilhados.
Maria coçou uma orelha, vestiu o pijama. A caminho da casa de banho pediu: Con-tamu-ma... a frase ficou a meio, interrompida pelos gargarejos feitos ao lavar os dentes e pela água a cair para o lavatório. O resto da frase foi quase gritado, quando a menina se dirigiu de novo para o quarto: história. Com ar decidido Maria suspirou e enroscou-se no seu cobertor favorito, único companheiro sobrevivente de batalhas, quer físicas, quer verbais, cujo desenlace terminava num eu só quero aquele, o amarelo, com gatinhos!
Ana aproximou-se da estante que estava perto da janela e pegou num livro, mas Maria fez um ar de enfado, não Anita, conta-me uma das tuas, das verdadeiras.
Bem, esta é verdadeira, uma vez que existe. O que tens na mão? Maria apontava para os vestígios de uma mancha de tinta azul, mesmo na palma da mão da mãe, Ana riu alto e disse: é tinta, mas não faz mal. Bem, agora preciso de silêncio. Vais contar um segredo? Não sei, acrescentou rapidamente Ana. Coçou a cabeça e disse: já sei, vou contar-te o segredo antigo, um que me acompanha há já muito, muito, muito tempo, por isso é tão grande e especial, cresceu imenso.
No quarto apenas se ouvia o barulho do vento. Com um grande gesto Ana disse baixinho algumas palavras, aproximou-se de Maria e sussurrou algo de misterioso ao ouvido da miúda. Maria riu-se, bateu palmas e disse, conta mais...é mágico?
(continua)